Não há marca que represente melhor a riqueza e o luxo britânicos do que a Jaguar: a centenária marca automóvel é, desde as suas origens, um emblema de beleza, exclusividade, estatuto e excelência – no entanto, esta imagem consolidada chega-nos mais da nostalgia do que com a realidade, uma vez que a empresa automóvel está em crise há muitos anos, sem se conseguir manter à tona.
Este cenário ajuda a compreender a mais recente e polémica campanha da marca automóvel, que incluiu uma transformação da sua identidade visual, eliminando o mítico felino do logotipo e a optar por uma imagem colorida, sinal da sua ‘desesperada’ aposta nos carros elétricos. Um passo polémico, que tem gerado muita controvérsia entre os seguidores regulares da marca, de acordo com a publicação espanhola ‘El Economista’. E, embora as mudanças tenham sido frequentes na sua longa história, talvez nenhuma tenha sido tão radical como esta.
Uma empresa de sidecars
Na verdade, as mudanças estão no ADN da empresa: desde a sua origem que está habituada a evoluir. A marca automóvel nasceu em 1922 como uma empresa de sidecars para motos – a ‘Swallow Sidecar’, como era então chamada, foi fundada por dois amigos, William Lyons – o ‘mister Jaguar’ e William Walmsley.
Com um empréstimo de mil libras obtido com a ajuda dos pais, alugaram instalações na cidade natal de Blackpool, e contrataram uma pequena equipa para iniciar rapidamente a produção comercial: desenharam um sidecr moderno, aerodinâmico e inovador, que foi um sucesso. Mudaram-se para instalações maiores, o que permitiu uma aventura noutros negócios, como reparação ou pintura de automóveis, fabrico de capotas ou estofos personalizados.
Foi um acaso que os levou a dar um passo em frente: compraram um Austro-Daimler queimado e tentaram restaurá-lo. A experiência resultou muito bem que começaram a fabricar carroçarias, com chassis de outras empresas. Com vários ramos de negócio em marcha, mudaram o nome para eliminar a referência aos sidecars, passando a ser a ‘Swallow Choachbuilding Company’, e mudaram-se para uma fábrica ainda maior em Coventry.
O primeiro carro
Em 1929 concretizaram um sonho, com a apresentação do seu primeiro automóvel desportivo, conhecido por ‘First SS’, em associação com a Standard Motor Company. Um carro elegante e aerodinâmico, com o qual pretendiam aventurar-se nas corridas.
Em 1932 lançaram a primeira gama de automóveis SS à disposição do público, com o SS1, com motor de 6 cilindros, e o SS2, com motor de quatro cilindros. Inicialmente disponível como coupé, ofereciam uma relação qualidade-preço excecional que os tornou muito populares e permitiu à marca sobreviver à complicada situação económica da época.
O sucesso desta nova gama de produtos acarreta uma série de mudanças na empresa: em 1934, Walmsley demonstrou vontade de deixar o negócio, pelo que vendeu a sua participação e trouxe novos acionistas para compensar a sua saída. Aproveitam a situação para mudar novamente de nome, passando a ser ‘SS Cars’.
Foi então lançado um novo modelo, a que chamaram SS 90, pois era a velocidade que conseguia atingir: 90 milhas por hora, ou seja, 145 quilómetros por hora. Foi o primeiro desportivo aberto de dois lugares da marca automóvel e foram fabricadas 23 unidades. Lyons, no entanto, não estava satisfeito: queria um modelo novo e ainda melhor.
Pôs os seus engenheiros a trabalhar na evolução do motor SS 90 e no final de 1935 apresentou o novo modelo, mais potente e rápido. Apresentou o carro num evento de luxo com jornalistas e vendedores, que foram questionados sobre quanto achavam que valia o novo carro: a resposta média foi de 765 libras. O preço real, 395 libras. uma agradável surpresa para os clientes. Foi apresentado ao mundo como um veículo diferenciado, com um excelente desempenho e um preço atrativo. Chamaram-lhe SS Jaguar.
II Guerra Mundial
Durante 5 anos evoluíram este modelo, com novas versões, mais eficientes, mais rápidas e mais luxuosas. Esteticamente brincaram com o uso de duas ou quatro portas. E a partir de 1938 passaram a fabricar a carroçaria totalmente em aço. Até 1940, a produção de automóveis parou. A guerra exigiu todos os esforços.
Durante a guerra, as suas fábricas dedicaram-se ao fabrico e reparação de aviões, embora não parassem de desenvolver os motores dos seus automóveis. Assim, ao mesmo tempo que realizavam projetos militares secretos, também conceberam um novo motor, a que chamaram XK, que alimentou a sua visão de um carro desportivo para produção em massa.
Em 1945, antes do fim da guerra, os acionistas da empresa reuniram-se para mudar novamente o nome. Não queriam estar relacionados com as SS nazis: a marca automóvel passou então a chamar-se diretamente Jaguar. Como disse Lyons aos acionistas, “ao contrário de SS, o nome Jaguar é distintivo e não pode ser associado ou confundido com qualquer nome estrangeiro semelhante”.
Os novos modelos lançados após o pós-guerra foram denominados Jaguar Mark V. Não foi um momento fácil, embora a procura reprimida tenha garantido muitos compradores. A produção foi prejudicada pela escassez de materiais, principalmente aço, sendo que dependiam totalmente de fornecedores externos para fabricar as suas carroçarias.
Finalmente, em 1948, concluíram o desenvolvimento do motor XK, que viria a revolucionar tudo: a produção iniciou-se em 1949 e continuou até 1992, tornando-se um dos com maior longevidade. O primeiro automóvel a ter este motor foi o Jaguar XK 120, apresentado no British International Motor Show em 1948. O objetivo era mostrar o seu novo e potente motor. O design era muito atraente e marcante, mas nem o sempre visionário Lyons poderia imaginar o sucesso deste automóvel, tanto entre a imprensa da época como para o público.
Uma procura impossível de atender
Na verdade, o problema foi o contrário: o sucesso foi tão grande que após a apresentação receberam 300 pedidos, e perceberam que era impossível satisfazer a procura. Era um produto com corpo em alumínio e reforços em madeira, feito à mão, num processo dispendioso e, sobretudo, lento. Tiveram de utilizar componentes de outros modelos, e até recorrer a outros veículos ingleses – como a Aston Martin – para conseguirem entregar as encomendas. Finalmente, conseguiram fabricar 240 automóveis.
Em 1950 iniciou-se a produção oficial, já com carroçaria em aço. E foi um sucesso total. Por um lado, pela sua potência, uma vez que afirmava que poderia ultrapassar os 190 quilómetros por hora de velocidade máxima. Mas, sobretudo, pela sua beleza, que a tornou objeto de desejo das mais famosas estrelas de Hollywood, como Humphrey Bogart, Clark Gable ou Lauren Bacall.
A isto juntaram-se os triunfos desportivos, alcançados em corridas tão prestigiadas como Le Mans. A Jaguar tornou-se a grande marca automóvel britânica. Nenhuma empresa o poderia ofuscar.
Um dos automóveis mais importantes da história
Em 1961, alcançou o seu maior sucesso, com o lançamento do E-Type, que foi uma verdadeira sensação. Combinou estética marcante, alto desempenho e um preço bastante competitivo. Tornou-se automaticamente um ícone automóvel. O próprio Enzo Ferrari disse que era o carro mais bonito alguma vez construído.
Após um período de tanto sucesso, os problemas surgiram em 1965. A British Motor Corporation (BMC) comprou a Pressed Steel, que fabricou todas as carroçarias monocoque em aço para a Jaguar. Lyons, que ainda estava à frente da empresa, estava preocupado com o futuro da Jaguar, acreditando que neste novo cenário o fornecimento contínuo de carroçarias estava ameaçado. Somada à idade e à falta de sucessor, decidiu aceitar uma oferta da própria BMC, para se fundir com a Jaguar, formando a British Motor.
A nacionalização do grupo
O novo grupo foi promovido pelo Governo britânico para se fundir com a Leyland, a Standard-Triumph e mais tarde com a Rover. Este conglomerado, que reunia praticamente toda a indústria automóvel inglesa, tornou-se ‘British Leyland’ em 1968. Foi um fracasso histórico. A deficiente tomada de decisão por parte dos gestores, as rivalidades internas, aliadas às dificuldades financeiras, levaram o Governo a nacionalizar o grupo. Um processo que entrou em vigor em 1975.
Nos anos seguintes tornou-se claro que, dado o pouco interesse dos gestores do grupo por muitos dos seus produtos, não dispunham dos recursos necessários para desenvolver e produzir novos modelos, incluindo os da Jaguar. Não havia como competir com marcas estrangeiras, principalmente japonesas.
Quando Margaret Thatcher chega ao poder, um dos objetivos que estabelece é privatizar parte da indústria automóvel: depois de muitas negociações, tentaram vender todas as partes possíveis do grupo e, embora não tenha sido possível com algumas marcas, a privatização da Jaguar foi concluída em 1984, quando começou a ser cotada na Bolsa de Valores de Londres.
Uma empresa privatizada e rentável
Os primeiros anos da Jaguar após a privatização, com John Egan no comando, alcançaram um nível de prosperidade que a empresa não experimentava há décadas. Mas para isso teve de tomar medidas drásticas: despediu um terço dos 10 mil funcionários da empresa, para reduzir custos. Conseguiu também resolver os principais problemas: fraco controlo de qualidade, atrasos nos prazos de entrega e baixa produtividade. O esforço para melhorar a qualidade dos veículos, aliado ao aumento dos preços, conseguiu melhorar a rentabilidade.
Assim que a Jaguar parecia uma marca saudável, a Ford entrou em cena, ao comprar as ações da empresa, que encerrou as atividades em 1990. Nesta nova etapa, lançou novos automóveis, como o S-Type e o X-Type. Em 2000, depois de adquirir também a Land Rover, associou-a à Jaguar, operando sob uma estrutura de gestão comum dentro da Ford. Partilhavam uma rede de vendas e distribuição e até alguns componentes.
Sob o mandato de Ford, a Jaguar entrou também no mundo da Fórmula 1: com a sua parceira Cosworth, era fornecedora de motores para várias equipas. Mas em 1999 deu um passo mais além e lançou a sua própria equipa, a que chamou Jaguar F1 Team, patrocinada pelo banco inglês HSBC. A equipa esteve ativa entre 2000 e 2005, e nunca conseguiu uma vitória, nem sequer um pódio. Foi finalmente vendido à empresa de bebidas energéticas Red Bull, donde viria a nascer a equipa Red Bull Racing.
No entanto, sob o domínio da Ford, a Jaguar nunca foi uma marca rentável. Perante esta realidade, em 2007, a Ford começou a procurar um comprador, juntamente com a Land Rover, e outras três marcas britânicas inativas: Daimler, Lanchester e Rover. Foram muitos os grupos interessados, desde fundos de investimento, outros fabricantes de automóveis e até fabricantes de escavadoras. Por fim, a vencedora do leilão foi a indiana Tata Motors, que pagou 1,7 mil milhões de libras.
Durante algum tempo, a Jaguar e a Land Rover operaram como empresas separadas, embora integradas. Até 2013, a Tata reestruturou o grupo, integrando ambas as marcas numa única empresa: a Jaguar Land Rover. Tornou-se responsável pelo design, fabrico e comercialização de automóveis Jaguar e Land Rover.
A mudança, que foi acompanhada por um forte investimento na inovação, foi um sucesso. A nova marca iniciou um período de vendas recorde, que atingiu o pico em 2018, quando vendeu mais de 180 mil automóveis em todo o mundo. Os mercados dos Estados Unidos, China, Reino Unido e Alemanha lideraram estes sucessos.
Crise de qualidade, vendas e imagem
Mas nesse momento iniciou um declínio que o levou à beira do desaparecimento. As vendas desde então caíram 66%, para cerca de 60 mil veículos por ano. Existem muitas razões por detrás desta queda. Por um lado, problemas de fiabilidade, causados pelos motores Ingenium, lançados em 2015. Tornaram-se o pesadelo da empresa, com os inúmeros erros que sofreu.
Avarias no motor, corrente de distribuição esticada, problemas com o turbo… mesmo em carros com baixa quilometragem. O mau serviço pós-venda que os clientes reportaram, aliado à recusa em resolver os problemas dos compradores, que chegaram mesmo a tribunal, geraram uma crise inicial de confiança na empresa. A ausência de novos modelos que revitalizassem a empresa também não ajudou.
E chegou o desafio da eletrificação ao mercado automóvel: um processo que afetou todas as marcas automóveis e que algumas têm enfrentado com mais sucesso do que outras. A Jaguar iniciou os seus planos com carros elétricos em 2017, com o objetivo de se tornar uma marca elétrica posicionada no segmento de luxo .
O primeiro modelo foi o Jaguar I-Pace, um SUV compacto, arrojado e inovador… mas que mal vendeu: as expectativas foram diminuindo com o passar do tempo, e agora não entrega sequer 10 mil unidades por ano – já foi anunciado que o modelo deixará de ser fabricado no próximo ano.
No meio desta crise, a Jaguar iniciou um profundo rebranding, que apresentou com uma campanha ousada que foi recebida com críticas. No vídeo, muito colorido e moderno, não há referências a carros e, além disso, o mítico felino desaparece do logótipo.
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